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"Ao fundo sou eu, mas será verdade / que sou? O fundo é que me inventa? / Terei mesmo essa identidade / feita de tinta apenas?" Palavras que respiram por Miguel Marvilla

domingo, 27 de outubro de 2013

Sobre o tema da prova de redação ENEM/2013

Antes mesmo de ler na íntegra a prova de redação do ENEM/2013, já podemos adiantar algumas ideias para quem saiu do teste mais cedo.
O tema "Efeitos da implantação da Lei Seca no Brasil" necessariamente deverá articular-se ao problema da ingestão de bebidas alcoólicas, apresentado como uma das causas do elevado número de vítimas no trânsito brasileiro. Espera-se que o candidato se posicione sobre as consequências da Lei que trata com rigor o condutor alcoolizado de um veículo. Das duas uma: ou o candidato adota um ponto de vista avaliando positivamente a Lei Seca, apontando como resultado a redução, mesmo que mínima, dos acidentes de trânsito, senão, pelo menos, a conscientização que muitos brasileiros passaram a ter a partir dela, ou assume uma perspectiva mais negativa, argumentando que os números de acidentes nas cidades e nas estradas recrudesceram, ao invés de diminuírem, uma vez que a ingestão do álcool é uma entre tantas causas da situação desastrosa no tráfego de veículos, como a negligência e a imprudência de motoristas, além da falta de manutenção das rodovias brasileiras.
A segunda posição, talvez a mais próxima de nossa realidade, não exclui a primeira, porquanto a Lei Seca supostamente atingiria, repito, uma das causas de mortes no trânsito brasileiro; no entanto, tomada isoladamente, a medida torna-se estéril, haja vista que alguns mecanismos para burlar o controle e a fiscalização, como os avisos no twitter e no waze, revelam a falta de seriedade e de responsabilidade de quem dirige alcoolizado. Além disso, mesmo com o aumento das blitz policiais, o transgressor da lei encontra a leniência de outras leis que não preveem punição mais rigorosa ao infrator.
O tema, por fazer parte do cotidiano da juventude brasileira, já que a maioria das vítimas encontra-se na faixa entre 18 e 24 anos, não apresenta grande dificuldade para ser desenvolvido, mas requer do candidato atenção para não repetir frases feitas ou cair nos clichês ("o carro é uma arma", por exemplo). Quem souber argumentar com fatos, dados e elementos inferidos da coletânea de textos - sem copiá-los -, possivelmente redigirá um texto sem grandes entraves, a não ser aqueles inerentes a qualquer exame importante, como o nervosismo e a falta de tempo na organização das ideias. Fora isso, o INEP mais uma vez acrescentou aos temas já propostos no ENEM uma questão de elevada gravidade, possibilitando ao candidato refletir sobre a própria conduta ou a de seu círculo social, desde familiares, colegas de escola, amigos, até, por que não, dos legisladores brasileiros, que não promovem as mudanças necessárias para evitar a impunidade.

quarta-feira, 9 de outubro de 2013

Machado de Assis vegetariano: isso não é piada...

MACHADO DE ASSIS QUERIA SER VEGETARIANO
Vejam esta crônica escrita em 5 de março de 1893 na coluna "A Semana" no jornal "Gazeta de Notícias".

Quando os jornais anunciaram para o dia 10 deste mês uma parede de açougueiros, a sensação que tive foi mui diversa da de todos os meus concidadãos. Vós ficastes aterrados; eu agradeci o acontecimento ao céu. Boa ocasião para converter esta cidade ao vegetarismo.

Não sei se sabem que eu era carnívoro por educação e vegetariano por princípio. Criaram-me a carne, mais carne, ainda carne, sempre carne. Quando cheguei ao uso da razão e organizei o meu código de princípios, incluí nele o vegetarismo; mas era tarde para a execução. Fiquei carnívoro. Era a sorte humana; foi a minha. Certo, a arte disfarça a hediondez da matéria. O cozinheiro corrige o talho. Pelo que respeita ao boi, a ausência do vulto inteiro faz esquecer que a gente come um pedaço de animal. Não importa, o homem é carnívoro.

Deus, ao contrário, é vegetariano. Para mim, a questão do paraíso terrestre explica-se clara e singelamente pelo vegetarismo. Deus criou o homem para os vegetais, e os vegetais para o homem; fez o paraíso cheio de amores e frutos, e pôs o homem nele. Comei de tudo, disse-lhe, menos do fruto desta árvore. Ora, essa chamada árvore era simplesmente carne, um pedaço de boi, talvez um boi inteiro. Se eu soubesse hebraico, explicaria isto muito melhor.

Vede o nobre cavalo! O paciente burro! O incomparável jumento! Vede o próprio boi! Contentam-se todos com a erva e o milho. A carne, tão saborosa à onça, — e ao gato, seu parente pobre, — não diz cousa nenhuma aos animais amigos do homem, salvo o cão, exceção misteriosa, que não chego a entender. Talvez, por mais amigo que todos, come-se o resto do primeiro almoço de Adão, de onde lhe veio igual castigo.

Enfim, chegou o dia 10 de março; quase todos os açougues amanheceram sem carne. Chamei a família; com um discurso mostrei-lhe que a superioridade do vegetal sobre o animal era tão grande, que devíamos aproveitar a ocasião e adotar o são e fecundo princípio vegetariano. Nada de ovos, nem leite, que fediam a carne. Ervas, ervas santas, puras, em que não há sangue, todas as variedades das plantas, que não berram nem esperneiam, quando lhes tiram a vida. Convenci a todos; não tivemos almoço nem jantar, mas dous banquetes. Nos outros dias a mesma cousa.

Não desmaies, retalhistas, nesta forte empresa. Dizia um grande filósofo que era preciso recomeçar o entendimento humano. Eu creio que o estômago também, porque não há bom raciocínio sem boa digestão, e não há boa digestão com a maldição da carne. Morre-se de porco. Quem já morreu de alface? Retalhistas, meus amigos, por amor daquele filósofo, por amor de mim, continuei a resistência. Os vegetarianos vos serão gratos. Tereis morte gloriosa e sepultura honrada, com ervas e arbustos. Não é preciso pedir, como o poeta, que vos plantem um salgueiro no cemitério; plantar é conosco; nós cercaremos as vossas campas de salgueiros tristes e saudosos. Que é nossa vida? Nada. A vossa morte, porém, será a grande reconstituição da humanidade. Que o Senhor vo-la dê suave e pronta.

Compreende-se que, ocupado com esta passagem de doutrina à prática, pouco haja atendido aos sucessos de outra espécie, que, aliás, são filhos da carne. Sim, o vegetarismo é pai dos simples. Os vegetarianos não se batem; têm horror ao sangue. Gostei, por exemplo, de saber que a multidão, na noite do desastre do Liceu de Artes e Ofícios, atirou-se ao interior do edifício para salvar o que pudesse; é ação própria da carne, que avigora o ânimo e a cega diante dos grandes perigos. Mas, quando li que, de envolta com ela, entraram alguns homens, não para despejar a casa, mas para despejar as algibeiras dos que despejavam a casa, reconheci também aí o sinal do carnívoro. Porque o vegetariano não cobiça as causas alheias; mal chega a amar as próprias. Reconstituindo segundo o plano divino, anterior à desobediência, ele torna às idéias simples e desambiciosas que o Criador incutiu no primeiro homem.

Se não pratica o furto, é claro que o vegetariano detesta a fraude e não conhece a vaidade. Daí um elogio a mim mesmo. Eu não me dou por apóstolo único desta grande doutrina. Creio até que os temos aqui, anteriores a mim, e, — singular aproximação! — no próprio conselho municipal. Só assim explico a nota jovial que entra em alguns debates sobre assuntos graves e gravíssimos.

Suponhamos a instrução pública. Aqui está um discurso, saído esta semana, mas proferido muito antes do dia 11 de março; discurso meditado, estudado, cheio de circunspeção (que o vegetariano não repele, ao contrário) e de muitas pontuações alegres, que são da essência da nossa doutrina. Tratava-se dos jardins da infância. O Sr. Capelli notava que tais e tantos são os dotes exigidos nas jardineiras, beleza, carinho, idade inferior a trinta anos, boa voz, canto, que dificilmente se poderão achar neste país moças em quantidade precisa

Não conheço o Sr. Maia Lacerda, mas conheço o mundo e os seus sentimentos de justiça, para me não admirar do cordial não apoiado com que ele repeliu a asseveração do Sr. Capelli. Não contava com o orador, que aparou o golpe galhardamente: "Vou responder ao se não apoiado, disse ele. As que encontramos, remetendo-as para lá, receio, que, bonitas como soem ser as brasileiras, corram o risco de não voltar mais, e sejam apreendidas como belos espécimes do tipo americano”.

Outro ponto alegre do discurso é o que trata da necessidade de ensinar a língua italiana, fundando-se em que a colônia italiana aqui é numerosa e crescente, e espalha-se por todo o interior. Parece que a conclusão devia ser o contrário; não ensinar italiano ao povo, antes ensinar a nossa língua aos italianos. Mas, posto que isto não tenha nada com o vegetarismo, desde que faz com que o povo possa ouvir as óperas sem libreto na mão, é um progresso.

ASSIS, Machado de. Obras completas. Volume III. 9. reimpressão. Rio de Janeiro: Nova Aguilar, 1997. p. 576-8